Jesus afirmou, com todas as letras, que daria “as chaves do reino dos céus” à sua igreja (Mt 16:19). O que isto significa? A igreja tem autoridade para legislar, em sentido absoluto, sobre o que é certo ou errado? Precisamos entender corretamente o significado da frase “as chaves do reino”. Por entender esta expressão de maneira equivocada, igrejas abusam de sua “autoridade”. O que o mestre realmente quis dizer? Ele havia acabado de dizer que edificaria a sua igreja (Mt 16:18), e na sequência, afirma que daria a mesma as “chaves do reino dos céus”. Ele completa: … tudo o que ligares na terra, será ligado nos céus e tudo o que desligares na terra, será desligado nos céus. Pois bem, qual o sentido destas frases? Vamos por partes.
Comecemos com a expressão “as chaves do reino dos céus”. Na linguagem bíblica, “chave” sempre é sinal de autoridade. Quem tem as chaves de algo, diz quem entra e quem sai. Mas em que sentido a igreja admite ou recusa a entrada de pessoas no reino de Deus? Conforme sabemos, a igreja não é o reino de Deus, mas uma comunidade deste. Em Mateus 21:43, Jesus afirmou que a jurisdição do reino seria tirada de Israel e dada a outro povo que desse seus frutos. Este povo é a igreja. Ela, agora, é a comunidade do reino. A maioria dos comentaristas concorda que as “chaves do reino”, que foram dadas a igreja, representam a “autoridade de pregar o evangelho de Cristo (cf. Mt 16.16) e assim abrir a porta de entrada do reino dos céus, permitindo o acesso”, para os que ainda não fazem parte do mesmo.
A pregação do evangelho, até os dias de hoje, “age como graça quando é aceita, e como juízo quando é rejeitada. Desse modo, o posicionamento sobre o anúncio da palavra decide, em última análise, sobre pertencer ao reino dos céus ou ser excluído dele”. O apóstolo Pedro, por exemplo, por meio da pregação do evangelho, “estava abrindo a porta para uns (At 2.38, 39; 3.16-20; 4.12; 10.34-43) e fechando para outros (3.23)”. Wiersbe comenta que Pedro teve a oportunidade e privilégio de abrir a porta da fé para os judeus no pentecostes (At 2), para os samaritanos (At 8) e para os gentios (At 10), contudo, todos os apóstolos compartilhavam desta autoridade. Grudem comenta que não só os apóstolos, mas todos os cristãos possuem essa “chave”, em algum sentido, porque todos podem compartilhar o evangelho com outros, abrindo assim o reino dos céus para os que nele entrarão.
Agora voltemos a nossa atenção para a expressão “ligar e desligar”. Ela vai se repetir, de novo, em Mateus 18:18: Em verdade vos digo que tudo o que ligardes na terra, será ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra, será desligado do céu. Neste segundo texto, o contexto é o da “disciplina eclesiástica”. Os textos estão muito próximos e as frases são idênticas, de modo que não podemos dizer que significa algo em um texto, e uma coisa diferente no outro. Ao entendermos a expressão “ligar e desligar”, veremos que ela se encaixa nos dois contextos.
A expressão “ligar e desligar” era muito comuns entre os rabinos. Eles falavam com frequência nestes termos, que significavam “permitir e proibir”. Observemos com atenção que, tanto Mateus 16:19, quanto Mateus 18:18, falam de “tudo o que”, e não “a qualquer que”, isto é, a passagem se refere a coisas e crenças e não a pessoas. Como representante do Senhor, a igreja e os apóstolos, iriam exercer autoridade de acordo com a sua palavra (de Deus). A igreja é proclamadora da palavra, e tem autoridade não só para abrir as portas, mas também para regulamentar, pela palavra, como as pessoas que entraram no reino devem viver. Então, as “chaves do reino” mostram o papel que a igreja tem como portadora da mensagem que “abre” as portas do reino para os pecadores, e, “ligar e desligar”, o papel que a igreja tem, ainda com base na palavra, de dizer como as pessoas que entraram devem se comportar. Repetindo: a autoridade da igreja, neste sentido, é sempre baseada na palavra.
É interessante a construção grega destes dois versículos (Mt 16:19;18:18). Mateus usou uma construção verbal grega incomum, um futuro perfeito perifrástico. Ou seja, é uma forma verbal grega que tem conotações em todos os tempos (passado, presente e futuro). Ele fala de algo que acontecerá no futuro, como já tendo acontecido no passado, com interferência direta do que ocorre no presente. A melhor tradução para o versículo seria a da ARA: “Tudo o que ligardes na terra, terá sido ligado nos céus, e tudo o desligares na terra, terá sido desligado nos céus”. Isto é, a igreja só estava fazendo algo que já tinha sido feito no céu. A igreja só permite o que já foi permitido por Deus, e só proíbe o que já proibido por Deus. A igreja não cria novas leis, ela apenas declara o que Deus já determinou sobre o assunto. Neste sentido, como comenta Wiersbe, Jesus não disse que Deus obedeceria tudo aquilo que a igreja decidisse na terra, mas que a igreja deveria fazer na terra tudo o que Deus já havia determinado no céu.
A igreja só ensina e declara o que Deus já ensinou e declarou em sua Palavra! Quando alguém que já faz parte do reino dos céus, faz algo que foi proibido por Deus, a igreja, como representante deste reino, precisa tomar atitudes para repreender e disciplinar esta pessoa, se preciso for. Em resumo, então, “as chaves do reino dos céus”, é a capacidade admitir pessoas para o reino, através da pregação do evangelho; e, a expressão “ligar e desligar”, deve ser entendida como “permitir e proibir”, e se refere a autoridade da igreja de exercer disciplina, se preciso for, sempre em conformidade com o que Deus já estabeleceu.

Eleilton William de S. Freitas

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GRUDEM, Wayne. Teologia Sistemática. Tradução: Norio Yamakami et all. São Paulo: Vida Nova, 1999.

RIENECKER, Fritz. Evangelho de Mateus: Comentário Bíblico Esperança. Tradução: Werner Fuchs. Curitiba, PR: Esperança, 1998.

WIERSBE, Warren W. Comentário Bíblico Expositivo: Novo Testamento 1. Tradução: Susana E. Klassen. Santo André, SP: Geográfica, 2006.

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Grudem (1999, p. 747).
Rienecker (1993, p. 290).
Hendriksen (2001, p. 209).
Wiersbe (2006, p. 75).
Grudem (1999, p. 746).
Wiersbe (2006, p. 76).
Grudem (1999, p. 747).